Incêndio de 15/10/2017
Local: Concelho de Arganil
José Carlos
Lisboa, Sta Maria dos Olivias, na companhia de familiares num parque infantil onde as crianças se divertem.
Este relacto está dividido em duas partes. A primeira por informação obtida por telefone e a segunda presencial.
Tinha conhecimento do incêndio da Lousã, da sua dimensão, do combate e dos meios, sejam terrestres sejam aéreos, pela página da internet da Protecção Civil.
Outros incêndios ocorriam um pouco por toda a região Centro.
Alertado pelas 16:00 horas de domingo, dia 15 de Outubro de 2017 de que tinha deflagrado um incêndio no concelho de Arganil, junto à Fraga da Pena, fui acompanhando a evolução por contacto telefónico com familiares.
Durante essa tarde contactei varias vezes um amigo, bombeiro voluntário da região, que me foi informando... Estavam simplesmente a aguardar ordens no quartel.
Segundo os relatos telefónicos, com amigos e familiares, ninguém via bombeiros no combate, não viam helicópteros nem aviões... O fogo estava a tomar proporções alarmantes...
Faço notar que a população do Concelho de Arganil está bem habituada aos grandes incêndios, de tal forma que, aquele outrora Concelho verde, passou a ser conhecido no país pelos incêndios de grandes dimensões e pela área ardida.
Comentários postos de parte, vamos aos factos.
Com a passagem das horas o incêndio, sem combate, foi ganhando força e dimensão, o vento alimentava as chamas que consumiam mato, pinhal, eucaliptal, soutos, carvalhais, enfim, tudo por onde passava, com uma velocidade estonteante. Fumo, muito fumo...
A certa altura "caminha" em várias direcções, pondo em perigo várias povoações. Pisão, Portelinha, Cerdeira, seguindo para Serra do Açor (Paisagem Protegida). Por outra vertente o fogo entra na Vila de Côja. Os Bombeiros de Côja recebem ordem de saída, mas, não saem da Vila.
Inacreditavelmente o fogo entra na povoação, a azafama é grande, as brigadas e os bombeiros não chegam, nem nunca poderiam chegar... 8 carros de combate... sim... 8 carros de combate para acudir a tanta gente, a tantas ocorrências, a tantas aflições, desesperos, agonias e devastação.
A revolta é grande, todos pedem ajuda; vizinhos ajudam vizinhos, gente de povoações próximas chegam para ajudar; o fogo está dentro da vila... agora são as casas, os amimais e pouco mais para salvar.
Os bombeiros e brigadas locais fazem o que podem e o que não podem, exauridos, estarrecidos, estafados, estoirados, correm para cima e para baixo, tentam acudir, mas... 8 carros de combate não é nada...
O fogo avançará para outros Municípios... Tábua, Oliveira dos Hospital e continua para o distrito de Viseu...
Causa uma devastação e uma destruição enorme... algo fora, completamente fora de qualquer imaginação...
A juntar-se à indigna "festa", falta a energia, os telefones deixam de ter "linha", a população já nem pode pedir por socorro... telemóveis só funciona, e mal, a rede da "Optimus" ou "ZON" ou "NOS" (como lhe quiserem chamar).
Nesse momento, sem contacto telefónico com os familiares decidi sair, ir para "cima" .
Amigos e familiares diziam-me "és doido... o que vais lá fazer? Nem te deixam passar! As estradas estão cortadas!"
Decidi, estava decidido! Não poderia deixar ao abandono aquilo por que sou responsável... Para além da fábrica tinha que saber dos familiares, e, sabendo que o fogo avançava praticamente sem combate, tinha que fazer algo.
Saí de Lisboa por volta das 23:50 de domingo 15 de Outubro pela A1 em direcção a Norte.
Parei na E.S. de Santarém para beber um café e encher o depósito do carro. Aí vi carros dos bombeiros do Algarve...
Na E.S. encontro gente como eu, não quiseram ficar em casa a ver televisão... gente que decidiu ir para a zona da Pampilhosa da Serra para acudir aos seus familiares. Trocámos informações sobre cortes de estradas e quais as alternativas a seguir.
Com um amigo em Lisboa a informar por telefone quais as estradas cortadas, decidi o trajecto.
Espanto total! A A1 cortada e transito desviado para a A23... Mais um... Incêndio na zona de Fátima, informam...
Entro na A23, sigo pela A13, saí para o IC8 em direcção a Pedrogão Grande, passo para a N2, sigo para norte até Góis. Fumo, muito fumo...
Na estrada não se vê ninguém... Foram quilómetros e quilómetros sem ver um único carro, nem gente, nem nada... Fogo, muitas linhas com vários quilómetros de extensão. Quando cheguei ao topo da serra, antes de descer para Góis, vi, em forma de ferradura, fogo. Fogo por todo o lado...
Cerca das 2:00h de 16 de Outubro chegado a Góis, sem rede no telefone do carro, tentei encontrar uma qualquer rede wi-fi aberta para poder descansar os que em Lisboa ficaram. Esforço em vão, nada funciona, tudo fechado, luzes apagadas...
Decidi seguir para Arganil, sempre com o clarão do fogo no horizonte, a fazer exercícios mentais para encontrar uma via de saída se as estradas tivessem cortadas... de muito me valeu as centenas de milhares de quilómetros percorridos de mota naquela zona quando era jovem... muito me valeu a memória de visualização e consulta das cartas militares dos extintos serviços florestais; estradas, aceiros, caminhos agrícolas e florestais... qualquer via de passagem poderia ser uma solução.
Sigo em direcção a Casal de São José e depois chego a Arganil.
Às 2:30 horas para junto do edifício do Município para tentar mais uma vez encontrar uma rede wi-fi aberta... nada... nada de nada...
Como se por marcação, atrás do meu carro estava o Luís e no seguinte outro Luís (o electricista). Fizemos uma pequena paragem e decidimos ir em direcção à Zona Industrial da Relvinha.
Na Avenida das Forças Armadas, em frente ao quartel dos B.V. Argus, uma quantidade impressionante de gente. A estrada estava quase que totalmente ocupada. Gente que tinha fugido e ali procurava um porto de abrigo, gente que ajudava, outros que procuravam ajuda, gente que vindo de longe, andando desnorteada, nos fazia parar... e nos fazia pensar na dimensão do desastre... Continuámos caminho até a Z.I., a expectativa era a de encontrar bombeiros preparados para defender a Zona Industrial. Nada, não havia um único bombeiro...
Por intermédio de outras pessoas tive conhecimento de que os meus familiares e amigos estavam todos bem, mas, que a devastação era "monstruosa".
Tranquilizado fiquei no final, e ponto mais alto, da Zona Industrial para qualquer eventualidade… sem energia e com rede esporádica no telemóvel... podia enviar uma mensagem escrita de vez em quando...
Em conjunto, fizemos uma plano de acção, rapidamente identificámos os materiais potencialmente inflamáveis que retirámos para local seguro e afastado de qualquer entrada.
Reunimos os extintores que posicionámos entre os carreteis do sistema de combate a incêndio.
Controlámos a pressão da água nos carreteis... nada... sem pressão...
A fabulosa, grandiosa, enorme estupidez estava ali tolamente explanada!!!
Um Concelho com serra, com montanhas com 1000 metros de altitude!!!
Assim como os franceses, alemães, países baixos, que não têm montanhas, também nós fizemos o mesmo... deixamos a água descer pelas montanhas, entrar nos rios onde descarregamos o esgoto, tratado ou não, para depois fazermos a captação, tratamento e por intermédio de centrais de bombagem fazemos a distribuição... gastamos recursos e energia estupidamente!!! E, quando não há energia? Ficamos sem água!!!
Com excepção de algumas aldeias do Concelho este é o panorama dominante.
Sem bombeiros, brigadas, helicópteros e aviões, o que sobra????
O combate imposto pela população. Mas... Esperem um momento... Sem água?
Restam os ramalhos, moto-serras, enxadas, enxadões, roçadoras, podões, machados, tractores, carrinhas de caixa aberta com reservatórios de água, atrelados, máquinas de sulfatar, tudo o que possam imaginar! A população não se deu como vencida! Combatem com aquilo que têm à mão... um esforço inglório... Nada chega para tal dimensão...
"Se ao menos houvesse um carro dos bombeiros..." diziam...
Nada, não havia nada... só o som do fogo, os urros, os estalos das carcódias dos pinheiros... o som dos rebentamentos de botijas de gás, de pneus de tractores, de camiões... Fumo, muito fumo...um autentico desastre... o abandono mais severo... uma revolta sem medida...
Abrimos os portões da fábrica para albergar camiões de um vizinho nosso... já tinha perdido alguns...perdeu os camiões e as cargas, perdeu máquinas equipamentos e materiais...
Não tivemos qualquer dano de maior... o fogo rondou-nos, mas, não conseguiu entrar, nem mesmo no eucaliptal que confronta com a Área Industrial.
Às 4:00 estavam 26ºC de temperatura...
Amanhece, nasce o sol, com a luz damo-nos conta da imensidão desolante...
Chegam bombeiros à Zona Industrial... são os tais do Algarve... não conhecem o terreno, estão claramente desapoiados... demoram mais de uma hora para encontrar um acesso... o fogo ali... ali à frente deles...
Decido fazer-me à estrada para saber de familiares e amigos.
Saí da Z.I. em direcção ao IC6 rumo a Côja para posteriormente chegar a Vila Cova de Alva e Avô.
Tudo queimado, negro, só negro e ainda muito fumo. Estradas intransitáveis devido às arvores que entretanto caíram, aos postes das telecomunicações, aos cabos eléctricos...
Com muita dificuldade chego a Vila Cova de Alva e depois a Avô. Estão todos bem, felizmente!
Queria subir a serra para o alto Concelho, mas, também eu cansado de tantas horas sem dormir, sem a lucidez mínima que se impunha, acabei por não conseguir...
Soube de gente que ajudando o próximo acabou por não conseguir salvar o que é seu... só as casas... e pouco mais...
A tragédia adensa-se com o conhecimento de casas destruídas, animais mortos, pessoas feridas e o pior de tudo, falecimentos... gente abandonada, esquecida...
Agora que passaram 6 meses da tragédia, por respeito aos falecidos e suas famílias, por respeito à população, por respeito a nós próprios, não poderemos deixar passar ao esquecimento o que toda esta gente sofreu.
Não voltem a abandonar a população!
A desgraça ainda não acabou...
Ficará para posterior relato os desabamentos, desmoronamentos, a poluição das águas dos rios...
Infelizmente a destruição não acabou... Infelizmente voltará...
O ciclo da água ficou, também ele, afectado...
Com a camada de cinzas depositadas nas terras, fazendo como que de impermeabilizante, as terras não poderão absorver a água, muitas árvores já não existem, a preciosa retenção feita pelo mato já não existe...
Aqui está um breve retrato do abandono, do esquecimento, da injustificada deserção do interior do país...
Quando se decreta para poupar deve-se pensar nas consequências...
Infelizmente estamos num país cujos governos centrais não sabem, nem nunca souberam, o que é programar, prever, preparar e actuar...
Obviamente os políticos que estão em Lisboa, de qualquer quadrante que sejam, não estão preparados, nunca estiveram... provavelmente nunca estarão... São políticos que não olham pela população, com os quais tendem a ter uma relação de distância... demasiada distância... até ao esquecimento.
Mais de 6 meses passados e o que se vê?
Nada, inacção pura e completa, um imenso rio de burocracia, com o qual se escudam e se escusam...
Gente sem casa... sem sustento... sem o mínimo condições de dignidade...
O que fazem os políticos? Passeiam-se pelo país fora com a intenção de demonstrar preocupação...
Decretaram a limpeza dos terrenos... como se se pudesse fazer assim... por decreto e já está! Vê-se claramente que desconhecem o interior do país, e nem se deram conta da resposta!
Nas notícias que passam na comunicação social, faz-se referência e mostra-se acções de limpeza dos terrenos e matas, mas, de facto, por este interior fora foi dada a resposta inequívoca!
O interior está completamente despovoado! Será que os políticos não sabem? Ninguém lhes disse?
Hectares e hectares sem população! Ninguém lá habita, são largas as dezenas de quilómetros que se podem percorrer sem que se encontre quem tenha aguentado tal abandono!